
A felicidade dura pouco
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HÁ
MUITOS, muitos anos, havia uma musica de Zé Rodrix que nos emocionava. Os primeiros
versos diziam "eu quero uma casa no campo, onde eu possa compor muitos
rocks rurais"; e continuava dizendo coisas lindas, como "eu quero a
esperança de óculos e um filho de cuca legal, eu quero plantar e colher com as
mãos a pimenta e o sal". Era com isso que sonhávamos, mesmo sem saber, ou
era o que gostaríamos de querer; belos tempos.
Os anos passaram, e os sonhos, no lugar de se ampliarem, encolheram.
O que é que se quer hoje em dia? Menos, acredite, pois querer um celular novo
que faz coisas que até Deus duvida é querer pouco da vida. Meu maior sonho é
bem modesto.
Nada me daria mais felicidade do que um celular que não fizesse nada, além de
receber e fazer ligações. Os gênios dessa indústria ainda não perceberam que
existe um imenso nicho a ser explorado: o das pessoas que, apesar de
conseguirem sobreviver no mundo da tecnologia, têm uma alma simples.
As duas mais dramáticas novidades trazidas pelos celular foram as odiosas
maquininhas fotográficas e a impossibilidade de uma conversa a dois. Quando
duas pessoas saem para jantar, é inevitável: um deles põe o celular -às vezes
dois- em cima da mesa. O outro só tem uma solução: engolir, mesmo sem água, um
tranquilizante tarja preta.
No meio de uma conversa palpitante, o telefone toca, e a pessoa faz um gesto de
"é só um minuto". Não é, claro. Vira um grande bate-papo, e não existe solidão maior do que estar ao
lado de alguém que te larga -abandona, a bem dizer- para conversar com outra
pessoa. No meio de um deserto, inteiramente sós, estamos acompanhados por
nossos pensamentos. Com alguém ao lado falando num celular, lendo os e-mails ou
checando as mensagens, não se pode nem ao menos pensar. É a solidão total, pois
nem se está só nem se está acompanhado. Tão trágico quanto, é estar falando com
alguém que tem um telefone com duas linhas; no meio do maior papo, ele diz
"aguenta aí que vou atender a outra linha" e frequentemente volta e
diz "te ligo já" e aí você não pode usar seu próprio telefone, já que
ele vai ligar já (e às vezes não liga). Não dá.
Raros são os que atendem e dizem "estou com uma amiga, depois te
ligo" – nem precisavam atender, já que o número de quem chama aparece no
visor, e as pessoas têm todos eles de cor na cabeça, como eu não sei.
Eu juro que tentei, já troquei de celular três vezes, mas desisti. Recebia contas
que não entendia, entrei de idiota, num "plano", e quase enlouqueci
quando quis sair. Hoje tenho um que praticamente não uso, mas é pré-pago, e só
umas quatro pessoas conhecem; ponho 20 reais de crédito, se não usar não vou à
falência, mas pelo menos não recebo aquelas contas falando de torpedos e SMS,
coisas que prefiro nem saber que existem. Ah, e meus telefones fixos são com
fio.
Do carro
já me livrei: há cinco anos não procuro vaga, não faço vistoria, não pago IPVA,
nem seguro, e sou louca por um táxi. Até ontem me considerava uma mulher feliz,
mas sempre soube que a felicidade dura pouco: hoje ganhei um iPod. Uma quase
tragédia, eu diria.
Danuza Leão
7 de março de 2010 para a Folha de São Paulo.