
O exercício da crônica
Escrever prosa é uma arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um
cronista; não a prosa de um ficcionista, na qual este é levado meio a tapas
pelas personagens e situações que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia mais
fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através da
janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência colhido
no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas
peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso
de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe de repente a crônica, provinda dos
fatos e feitos de sua vida emocionalmente despertados pela concentração. Ou
então, em última instância, recorrer ao assunto da falta de assunto, já
bastante gasto, mas do qual, no ato de escrever, pode surgir o inesperado.
Alguns fazem-no de maneira simples e direta, sem caprichar demais no estilo,
mas enfeitando-o aqui e ali desses pequenos achados que são a sua marca
registrada e constituem um tópico infalível nas conversas do alheio naquela
noite. Outros, de modo lento e elaborado, que o leitor deixa para mais tarde
como um convite ao sono: a estes se lê como quem mastiga com prazer grandes
bolas de chicletes. Outros, ainda, e
constituem a maioria, "tacam peito" na máquina e cumprem o dever
cotidiano da crônica com uma espécie de desespero, numa atitude
ou-vai-ou-racha. Há os eufóricos,
cuja prosa procura sempre infundir vida e alegria em seus leitores e há os
tristes, que escrevem com o fito exclusivo de desanimar o gentio não só quanto
à vida, como quanto à condição humana e às razões de viver. Há também os modestos, que ocultam
cuidadosamente a própria personalidade atrás do que dizem e, em contrapartida,
os vaidosos, que castigam no pronome na primeira pessoa e colocam-se geralmente
como a personagem principal de todas as situações. Como se diz que é preciso um pouco de tudo para fazer um
mundo, todos estes "marginais da imprensa", por assim dizer, têm
o seu papel a cumprir. Uns afagam vaidades, outros, as espicaçam; este é lido
por puro deleite, aquele por puro vício. Mas uma coisa é certa: o público não dispensa a crônica, e o
cronista afirma-se cada vez mais como o cafezinho quente seguido de um bom
cigarro, que tanto prazer dão depois que se come.
Coloque-se porém o leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em
que, positivamente, a crônica "não baixa". O cronista levanta-se,
senta-se, lava as mãos, levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a
um amigo, põe um disco na vitrola, relê crônicas passadas em busca de
inspiração – e nada. Ele sabe que o tempo está correndo, que a sua página tem
uma hora certa para fechar, que os linotipistas o estão esperando com
impaciência, que o diretor do jornal está provavelmente coçando a cabeça e
dizendo a seus auxiliares: "É… não há nada a fazer com Fulano…" Aí
então é que, se ele é cronista mesmo,
ele se pega pela gola e diz: "Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma
crônica sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita
e divirta os leitores!" E o negócio
sai de qualquer maneira.
O ideal para um cronista é ter sempre
uma os duas crônicas adiantadas. Mas eu conheço muito poucos que o façam.
Alguns tentam, quando começam, no afã de dar uma boa impressão ao diretor e ao
secretário do jornal. Mas se ele é um verdadeiro cronista, um cronista que se
preza, ao fim de duas semanas estará gastando a metade do seu ordenado em
mandar sua crônica de táxi – e a verdade é que, em sua inocente maldade, tem um
certo prazer em imaginar o suspiro de alívio e a correria que ela causa,
quando, tal uma filha desaparecida, chega de volta à casa paterna.
Vinicius de Moraes
in Para viver um grande amor (crônicas
e poemas)
in Poesia completa e prosa: "Para viver um grande amor"